Autorias e Desencontros

Cortei o cabelo para ver se conseguia cortar outras coisas que estão me enrolando...

sábado, 13 de novembro de 2010

Novidade

Hoje eu acordei
Sem nenhuma vontade
de morrer.
Não!
Não tive seu beijo
de madrugada
e até queria
tanto ter.
Mas é a vida que
Hoje me acordou
Sem nenhuma vontade
de morrer,
me dizendo que
talvez vivê-la,
mesmo desagradável,
há de ter nos seus olhos
algum sentido,
há de ter no sorriso do irmão
algum sentido,
há de ter na esperança dos que amam
algum sentido,
há de ter algum sentido
na força dos que se levantam às quatro da manhã
e deixam o suor como semente na terra,
há de ter algum sentido
ainda que continue nos faltando
inventá-lo.
Mas essa ausência
não muda o fato de que
Hoje eu acordei
Sem nenhuma vontade
de morrer.

A césar o que é de césar

Nós
que vamos morrer
Te saudamos.
Nós que sobramos,
que não servimos
nem pro alistamento
no exército de reserva
de mão-de-obra barata,
Nós
que vamos morrer
Te saudamos.
Nós
que temos as marquises por casa
(nas marquises dos bancos onde você faz
seu fundo de renda fixa
nós amargamos nossa vida instável),
Nós
que recebemos os seus homens vestidos de azul
temendo por nossas vidas
e tentando entender porque é preciso
que os homens nas fardas arranquem
até as nossas garrafas de água,
Nós
que vamos morrer
Te saudamos.
Nós,
a quem você não se deu ao trabalho
de ensinar o que significam esses desenhos
que faz nos papéis,
que chama de letras,
que diz fazerem as palavras,
que diz que não sabemos falar,
Nós
que vamos morrer
Te saudamos.
Nós,
que vasculhamos o seu lixo
para dele fazer alimento,
Nós
que sequer podemos
competir com os seus cães
pelo direito de cagar nas ruas,
Nós
que em dia nenhum nascemos,
Nós
que vamos morrer
Te saudamos.

O Plágio ou Intertextualidade (tanto faz)

"Se nossa gente sofrida
Se despede da dor
Quando a Banda está passando,
por que a Banda não poderia
passar todos os dias?
Se até o homem sério
para de contar dinheiro
e Se até de contar vantagens
para o faroleiro
Quando a Banda está passando,
por que a Banda não deveria
passar todos os dias?
Se a rosa triste se abre,
Se a moa triste e calada sorri e
Se a meninada toda
Se assanha
Se a Banda está passando,
por que a Banda não passaria
todos os outros dias?
Se o velho
Se esquece do cansaço e
Se imagina outra vez moço,
Se a moça feia
Se debruça na janela e
Se imagina linda,
Se a marcha alegre
Se espalha na avenida,
Se até a Lua saiu do meios das nuvens,
Se até a Cidade tão cinza
Se enfeita de outras cores,
Quando a Banda está passando;
por que não caberia
a Banda passar todo dia?
Por que o que é doce
sempre tem que acabar?
Por que as coisas voltam
ao lugar de onde queremos tirá-las?
Por que cada canto
retorna à dor
como Se a dor fosse música melhor?
Por que voltou cada qual
para o seu canto,
Se mais queremos estar
no canto do outro?"

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

EXCENTRICIDADE

é extremamente possível viver sozinho
é exatamente possível não cair na tentação
de experimentar a maçã vermelha,
a exteriordade, que chamamos de o outro.
nem é tão excepcional assim:
tantos têm muitos ao lado, mas
estão extintas as possibilidades
de experenciar o outro como potência.
porém, sem esse tal outro,
exemplicando, a vida fica chata
como dias de calmaria no mar

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Solidão de Maio

"...de repente eu olhei pro outro lado da cama e tinha uma máquina, uma fotocopiadora talvez. Não era mais meu marido: era uma máquina de fazer fotocópias. Uma máquina não negocia: ou diz sim e executa o que você quer, se isso está previsto nas suas programações e funções; ou diz não e você já era, se isso não está previsto nas suas programações e funções. Uma fotocopiadora não cria, não inventa, não imagina: ou faz ou não faz, mas só dentro daquilo que já estava previsto nas suas programações e funções. (...)"
"...de repente eu olhei pro outro lado da marcha, da luta, da militância. Vi que eles estavam lá, iludidos que poderiam fazer uma casa nova com os mesmos móveis nos mesmos lugares e nas mesmas funções. Sim! Queriam lutar, mas traziam os móveis nas costas: o status, a hierarquia, a polícia, a família, e muitos outros.(...)"
"...de repente eu olhei pro outro lado do espelho: que susto! Eu também era uma fotocopiadora! E eu também trazia nas minhas costas os meus móveis intactos!(...)"

Trecho do conto de Margarete Santana, convenientemente expropriado por mim.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

ao senhor de alguma coisa

o senhor deve se divertir
me vendo dançar
nesse mundo que
o senhor criou
o senhor deve gargalhar
me vendo brincar
tomando banho frio
nesse outono-inverno
me lixando pra
gripe, resfriado, pneumonia,
e o meu pau se encolhendo
o senhor deve até chorar
me vendo escrever
versos tristes sobre
não ter o amor
de nenhuma teresa
"nem de nenhum joão"¹
ao senhor que me assiste
nesse reality show
inventado por si mesmo
não dou minha vida
nem saio dela:
não quero te conhecer
pessoalmente ainda

¹Contribuição de Tati Ribeiro

sexta-feira, 26 de março de 2010

Sonhos da semana passada

"Caramba, você vai escrever algo biográfico? Ainda mais assim na cara!!!"
"Tudo aqui é pseudobiográfico, querida. Pseudo!"
Diálogo entre a minha morte e a minha poesia

Ela sonhou que me procurava
Eu como sempre em casa
Foi parada na portaria
por pessoas amigas minhas
Na cama, lhe avisaram,
ele está desde cedo
acompanhado por DUAS moças
Ela acorda assustada

Eu vou dormir cansado, exausto por mais um namoro frustrado, e esse pior do que os outros: um término dela sem motivo algum explicável, confessável. Aí não dá outra: sonho que tem um cara dando em cima dela e parto pra cima dele com um bastão de baseball. Caralho, eu nunca tive um bastão de baseball. rsrsrs.

Mas na vida real nós não nos traímos. Só desperdiçamos nosso amor com a minha fome e o medo dela de viver e assim ofender à mãe, que não acredita que viver seja seguro.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Mangas e Goiabas

No ano em que fiz vestibular completava 40 anos do AI-5. Acreditávamos que esse poderia ser um tema das provas. Então incluí nos meus estudos filmes sobre a Ditadura Militar. Um dia assistíamos um na minha casa e meu pai acabou sentando na sala para assistir conosco. Ora, nem eu nem meu pai gostávamos de política, partidos, militância, etc. Queríamos apenas viver nossas vidas. Mas no meio de uma cena de tortura de um preso político meu pai me interpelou:
- Era isso que eles faziam com todos os comunistas que eram presos?
- Sim.
Seus olhos estavam marejados. Depois da resposta retirou-se para seu quarto e eu fui vê-lo. Contou-me a história abaixo.
*******
"Quando era garoto entrava sempre nas épocas de mangas e de goiabas no quintal no final da nossa rua, que era de um velho. Este homem saía de casa apenas para ir ao Mercado e voltar. Ninguém sabia o que ele fazia da vida, apenas que veio da capital para a nossa cidade já aposentado. Toda vez que o velho me ouvia catando mangas, goiabas, araçás, etc, saía da casa ao terreiro, e eu danava a correr para que ele não me pegasse. Um dia, porém, ele me viu na rua com minha mãe. Ela não gostava dele, virou a cara. Mas ele entrou em nossa frente e disse para minha mãe:
- Seu filho todo dia está no meu quintal pegando goiabas e quando me vê sai correndo.
- Pode deixar, ele não fará mais isso. - disse a minha mãe, já nervosa.
- Ora, ele não precisa correr quando me vê. A senhora acredita em Deus, então pense: se Deus fez o Mundo fez para todos os seus filhos, não para ser cercado por alguns e proibido para outros. Eu posso não acreditar em Deus, mas acho que eu não sou o dono daquelas goiabeiras, nem das mangueiras. Elas precisam ser de todos. Por isso, Dona, acho que as árvores são da terra e a terra é delas, e que seu filho assim como qualquer pessoa tem direito àqueles frutos...
- O senhor é mesmo estranho. Dá licença, estamos com pressa. Até logo. - minha mãe se desviou do caminho dele.
Depois disso minha mãe me proibiu de ir lá, dizendo que aquele velho era maluco e subversivo e que vivia cercado de outros subversivos que vinham da capital se esconder aqui. Algum tempo depois uns homens vieram buscá-lo e nunca mais o vimos. Meu pai me disse que eram homens da polícia. E eu não soube o que aconteceu a ele."
***
Hoje, penso que o modelo de sociedade, que espero ajudar a construir, deve ser parecido com o que o velho disse: uma sociedade onde para começar as goiabas e mangas sejam das crianças que quiserem.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Desgraças de um escritor medíocre

Quais coisas podem ferir o narcisismo de um escritor que não se importa na sua mediocridade literária? Durante um bom tempo me achei inatingível aqui em baixo, escondido em falsas exposições no encontro com as milhares de pessoas que me conhecem e do olhar dos cinco amigos que às vezes perdem tempo me lendo. Mas 2008, ano que para mim não acabou quando começou 2009, que antes disso se agravou pelo meado do ano passado, e ainda perdura quase no décimo dia de 2010, me fez perceber que não. O que, entretanto, se constitui argumento central neste texto ridículo é uma enorme fonte de tortura para qualquer escritor, que me acometeu daquele tempo para cá: conseguir trabalhos em que tenha que fazer extensos relatórios burocráticos. A literatura não cabe nos relatórios. Como escrever sem produzir sons melódicos, sem insistir na letra "S", sem repetir palavras com explosivos sons de "p"? Como escrever sem falar que a amo, que o amor é uma merda, que o amor é uma maravilha, que o amor pode ser as duas coisas simultaneamente e nos enlouquecer com isso? Como escrever sem ironias, sem deboches, sem hipérboles, sem sarcasmos, sem metáforas, sem sacanear quem está lendo e quem se deu o trabalho de escrever? Como escrever sem falar de mim, da minha opinião, do meu suor que escorre constantemente, de como escovo os dentes antes e depois de tomar café de manhã, sem falar do meu próprio lindo umbigo? Castigo sádico a vida me reservou: dúvida entre ter que pagar as contas ou abandonar esses relatórios insuportáveis!!!